terça-feira, 23 de março de 2010

"A República na Beira Alta", Manuel Martins e Abreu

Excerto do capítulo IV "Entulho de empregados"

"Mortagua tem a fama de ser a terra mais republicana da Beira. Não quero discutir agora se tambem tem o proveito. Para esta fama contribuiu o esforço que faço ha 36 anos para conter os homens no justo, afrontando-os de cara até dentro das repartições e acusando-os na praça publica pela palavra e em livros, distribuídos aos milhares pelos de casa e visinhos. Ultimamente o conflicto entre a posição e a capacidade e o nascimento atirou para a liça com mais dois campeões; o burel grosseiro era barato estojo para as boas folhas de Lopes d’Oliveira e Tomaz da Fonseca que, não cabendo dentro dos moldes existentes nem das camisas de estopa caseira, conquistaram logar entre os que sonham reformas.

O terreno é bom para sementeira, porque o mortaguense é capaz de civilisar-se. Entretanto eles, depois de terem serviços, colocando-se à meza do orçamento em vez de conquistarem pelo trabalho livre os meios de existir; deixaram de ser elementos da primeira fila.
Augusto Simões é o chefe do falado republicano de Mortagua; tendo sahido muito moço para o Brasil onde se dedicou à vida comercial, por lá andou muitos anos. Guarda-livros de importantes casas e de bancos, não ajuntou mais que as mezadas que deva aos pais; pequenas, mas suficientes ao seu bem estar. Vira individuos de menor habilidade e capacidade de trabalho enriquecem ali ao seu lado e continuou pobre.
A proclamação da republica no Brasil fez estremecer todo aquele corpo colossal. (…)
- Mairink. Está aí o Sousa?
-Qual Sousa procura V. Ex.ª?
-O Augusto Simões.
-Foi assistir ao Guarini no teatro da Republica.
-Fale com ele hoje mesmo, para amanhã comparecer no seu escritorio ao meio dia.
Oito dias depois contava a praça do Rio mais uma casa barcaria.
Vê-se bem com que genero de capital entrou cada um dos tres socios. O seu giro foi de muitos milhares de contos, talvez sem dez tostões de lastro.
Ganharam e perderam fortunas.
A’quele período chamou-se – do ensilhamento.
Como tudo era feito no ar, sobre papeis sem base, felizes os que saíram com a pele.
Foi o Augusto um deste; alem da pele trazia uma fortuna vulgaríssima para o Rio, soberba para Mortagua.
Estava cansado; o Rio era naquele tempo insalubre e o Simões retirou-se para cá.
Era um homem honrado ou tinha de corar diante do seu dinheiro, como muitos?
Eu tenho-me na conta de honesto; fui no Brazil, durante muitos anos, e por logares conhecidos, carroceiro, serrador, guarda-livros, professor, agrimensor, curandeiro , jornalista, negociante, pedreiro, regente de lavoiras, carrapina, construtor, cabouqueiro, derribei matas, capinei e plantei cafezais, destruí saúvas, dissequei pantanos, valei terrenos.
E se não puz uma casa bancaria no ensilhamento, foi porque não vivia no Rio e não conhecia o Mairink nem o Quintino – nem era conhecido deles. Julgo mais fácil justificar a fortuna do Augusto do que a maioria das que por aí ha.
Augusto, alem de possuir o saber de experiencias feito, tem atracções, é bom homem, inteligente, obsquiador, popular e munificente. Vinha cheio de ideias nobres, resolvido a engrandecer, quando podesse, a sua terra.
Ao chegar, acordou.
A sua superioridade sobre quasi todo o meio e o seu dinheiro não lhe foram perdoados.
Sendo presidente da Camara, saneou a sua povoação, em grande parte á sua custa, macadamizando as ruas de que foram retiradas as estrumeiras, facto horrivel para a rudeza dos seus visinhos e dependente de coragem.
Apesar disto continuou a trabalhar e não se vingou de ninguém, continuando o seu vinho, o seu caldo e a sua bolsa ao alcance de quem precisa.
Ultimamente construiu um belo edifício escolar, que ofereceu ao Estado.

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