terça-feira, 16 de março de 2010

Obras de José Lopes de Oliveira: "...E Mesmo Contra a Maré"


Excerto da obra de José Lopes de Oliveira "...E MESMO CONTRA A MARÉ"
Em vez de prefácio - A Paisagem e o Demónio
Quando nesse dia me embarcaram no Niassa, só uma certeza levava: que, se naufragássemos, ia, enfim, ver África…
Eu conhecia a África – dos livros. E, pelos livros, mais de vinte anos a ensinara – tão variada geologicamente, tão diversa em flora e fauna, de tão estranhas raças, de tão singulares civilizações: continente e ilhas, desertos, oásis, selvas, planícies, cordilheiras, vulcões, rios poderosos, imensos lagos, e vastas cidades rumorosas, avizinhadas de gentílicos povoados…
Mas, há muitos mais anos, eu conhecera outra África, que tinha só aspecto - de solidão, de uniformidade telúrica, de monotonia vegetal! Conhecia-a dos sonhos; desde menino, nunca dormi sem sonhar: os sombrios pesadelos encheram as noites da minha infância.
A costa, bravia e nua, sobe a pique. Do mar tenebroso, onde navego, só distingo, além das falésias, pardos areais com anaínhos arbustos, de longos ramos ligeiros, que o vento impetuoso arrasta. De quando em quando a calma imobiliza-os; mas como numa tortura interrompida, por que se adivinha que não cessou de todo o seu martírio: as suas pequeninas folhas estão todas trementes!
E esta paisagem volteava e corria pela costa adusta, toda a terra deserta, sem alma vivente, ao clarão dum luar nunca visto, com o calor do sol e o brilho álgido das estrelas…
- É a África! É a África! – reflectia.
Ora para mim, na infância, a África era o lugar da expiação dos grandes crimes – conforme ouvira. E, assim contemplando este ermo imenso à borda do mar, a minha vista sondava, interrogava, afligia-se, procurando descobrir qualquer figura humana; e, cansados os olhos sem os encontrar, meditava: - onde estarão os degredados?
E o mar, gemendo, arfando, sem vagas, trágico de negrume, viscoso e luzente!
A este sonho sucedia sempre outro sonho…
A acção passava-se num telheiro de forno, pegado à casa onde eu morava, na povoação da Beira onde me criei.
Havia ali, para amassar a broa, um grande caldeirão com água a ferver, suspenso e grossas correntes.
Ouvia então um grande barulho sobre o canto da lenha; e logo me aparecia o Demónio. Alto e corpulento, tinha um semblante humano: mas em tudo era caprino, a não ser nos cornos retorcidos como cifres de carneiro.
Aproximava-se lentamente e perguntava:
- Queres vender-me a tua alma?
Já sabia a minha resposta, seca, monossilábica, decidida.
- Não.
Em regra nem esperava por ela: apenas fazia a pergunta, e até sem a acabar, investia.
Com uma agilidade espantosa, desviava-me; ele ia bater de encontro à padieira do forno, e ficava coberto de cinzas.
Eu era muito ferveroso crente, e sabia orações de esconjuro – mas nunca atinava com elas, nem mesmo com o sinal da Cruz.
A luta prolongava-se: começava a sentir-me cansado, pisado, ferido… então, juntando todas as minhas forças, e com o pensamento firme em Deus, numa maravilhosa segurança de golpe agarrava o Demónio pelos chavelhos, e, dum só balanço, atirava-o para dentro do caldeirão onde a água fervia em cachão.
Nunca conseguia ver as carantonhas de Santanaz neste banho, porque eu ainda de tão pequena estatura que, mesmo em bicos de pés, não alcançava os bordos do caldeirão.
Mas as patas, que ficavam de fora, em breve imóveis, traziam-me a alegre certeza de haver vencido e morto o Diabo!
Isto tudo acabou, ao entrar na puberdade. Foram então outros pesadelos, outras lutas…
Ao canto, o Diabo pinchou sobre a ruma da lenha que, com estrondo, desabou toda; aproximou-se e disse pausada, sarcasticamente:
- Eis-te, afinal… atado de pés e mãos, prisioneiro. Já não poderás escapar; és meu – vencido… e convencido!
Retardei prudentemente a resposta às suas insolentes palavras: e o meu silêncio animou-o.
- Como pretendias, tresloucado, continuar lutando contra o meu poder?
Contive-me, e fraquejei:
- Mas nem sequer pensei mais em Vossa Excelência, desde a ultima vez que nos encontramos: porque atribuir-me, pois, qualquer intenção de hostilidade?
Então ele retorquiu:
- Nenhum acto de hostilidade? E delicioso, amigo! Passaste a vida a chamar pela Verdade, pelo Direito, pela Justiça, isto é, por aquele que me jurou ódio eterno: porventura ignoras que Verdade, Direito, Justiça, são invocações do seu nome?
Senti que o internal mestre de Lógica me excederia em dialéctica, e não tergiversei mais:
- Pois bem: se queres recomeçar, recomeçaremos – miserável!
E lancei-me a ele… Mas quantas vezes estive a ponto de ser subjugado!Alguma coisa me faltava: a energia sobrehumana, a força angélica à qual tudo é fácil, à qual tudo era possível. Em lugar de opor-lhe, desde logo, um «não» decisivo, eu tentara discutir, iludir, parlamentar.
Procurei reanimar todas as fontes vivas da inocência e da fé, sopitadas no fundo do meu ser: e de repente, como outrora, dum só balanço atirei com o Inimigo para dentro do caldeirão.
Mais uma vez – vencera!
Febo Moniz, defrontando-se com o Cardeal-Rei, que queria entregar Portugal a Filipe II – o Demonio do Meio Dia – imprecara:
- Podeis, Senhor, dispor da nossa vida e dos nossos bens; mas não podeis dispor da nossa alma – que essa só pertence a Deus!
O Demónio dispôs dos nossos bens e das nossas vidas, fugilando, enforcando, desgolando, deportando, sequestrando, roubando: mas não pôde nada sôbre a alma de Portugal, que sessenta anos depois ressurgiu, em esplendor de épicas vitórias, tal como em Cerneja e Ourique.
Ao acordar, o grito de São Tiago! São Tiago! soou a meus ouvidos como um apêlo de batalha...
Passaram já tantos anos! Mas sei, meu Deus, que a minha alma, a minha alma de criança crente que lutou com o Demónio, mas a vendi nunca, nem venderei jámais.
Lopes D'Oliveira

2 comentários:

  1. gostava de ter acesso ao livro
    sou professor de História e vou aconselhar aos meus alunos que leiam o blog

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  2. Ricardo Abreu31 maio, 2010 14:13

    procurei informação sobre este homem para um trabalho universitário e só aqui encontrei o necessário

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