quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Ana Fiadeira de Tomás da Fonseca

O livro Agiológio Rústico/Santos da Minha Terra do grande escritor e filho de Mortágua, José Tomás da Fonseca, apresenta nove pequenas histórias de pessoas, homens e mulheres que, pelo seu percurso de vida e pelos relatos passados de boca em boca, constituíram razão suficiente para que a sua passagem terrena se perpetuasse para além da sua morte. Apresenta-se aquela que, pensamos, melhor ilustra a época que ora se comemora: O primeiro centenário da República. 

"Ana fiadeira – A que enlouqueceu de amor "
Não se admirem que venha juntar outro modelo de abnegação e santidade – a Fiadeira que enlouqueceu de amor. Andava o seu filho em plena faina de conduzir a charrua, carrear estrumes, ceifar a seara, amoroar os pastos, colher a uva, atestar o tonel…quando recebeu intimação para se apresentar no seu antigo regimento.
E logo a notícia correu de boca em boca:
- Mobilização geral. Vamos também entrar na Guerra.[Primeira Grande Guerra (1914-1918)]
Atarantada com aquela notícia, a Ana correu a casa do seu antigo amo:
- Veja este papel. Vão levar-me o João. Não o deixe seguir. Por alma de sua mãe lhe peço!
Voltando a casa, abatida, começou logo a preparar o que julgava indispensável para a viagem do seu filho para a guerra: Desceu ao regato a lavar as camisas. Com uma carqueja e um pano molhado, tirou o pó e as nódoas à roupa dos dias santos e com sebo deu aos sapatos, já usados, um lustro e uma limpeza que os deixou como novos. Mas o que todos haviam de admirar, decerto, era a carapuça nova, de dobrão encarnado, e a cinta espanhola mandada vir do Alentejo, um ano antes, por um maltês que tinha ido às ceifas.
Na véspera, preparou a trouxa da roupa e o farnel para a viagem. Foi à capoeira e escolheu a galinha mais gorda que matou, depenou e cozeu; desceu à horta donde voltou com duas folhas de couve, envolvendo-a nelas, para ir bem fresca e bem guardada.
Nesse domingo, mal o buraco luziu, largaram serra abaixo.
O filho, pouco falador por natureza, parecia o cordeiro atrás da ovelha!
Ela, porém, tagarelava sempre:
- Não discutas…faz o que eles mandarem, para que não te ralhem nem castiguem. Obedece…lá diz o ditado “ quem não obedece não é obedecido”. Sabes bem o que é a gente andar por caminho direito…o gado que vai com o pastor nunca se perde. Vocês, lá na tropa, também formam um rebanho, onde os pastores são aqueles maiorais que usam nos braços umas tiras douradas…- Esses pastores às vezes são piores que os lobos. - Quando tiveres alguns desses, não lhes atires pedradas, como eu fazia quando os de cá me assaltavam o gado…faz-te humildezinho…cabrinha mansa mama na sua mãe e na alheia!...
O João, para a sossegar, prometia fazer tudo quanto lhe mandassem.
- João…!- Senhora Mãe…- Também disseste adeus à tia Amélia?- Andava na horta quando eu ia a sair…- E que te disse ela?- Que rezaria por mim…- Coitadinha… Deus a conserve cá por muitos anos…
Para que chamava o governo tanta gente? Dizia-se que, na estação passavam, dia e noite, comboios carregados de tropas e de peças de artilharia com as bocas bem tapadas; falava-se muito em “alemões” e que essas bocas de fogo era para os não deixar vir contra nós que nunca lhes fizemos mal nenhum…
- Todos os dias, ao deitar e ao levantar da cama, reza ao Anjo da Guarda, para que te acompanhe e te defenda das tentações do demónio maldito. Lembras-te da oração que te ensinei? “Anjo da Guarda me alumie, /De noite e de dia,/E me desvie/Dos caminhos do mal,/Para alcançar a paz celestial./ Padre Nosso e Avé Maria”.
E voltava a pensar nos “alemões”…não falaria deles ao filho para não o assustar.
- Ó João…! - Senhora mãe…- Olha, não te percas nos caminhos de lá. Anda sempre à vista do capitão. Não te esqueças de perguntar, todos os dias, pela saúde ao capitão. Quem não é bem criado não é estimado. - Pois sim, senhora mãe…- Lembras-te do António Fusco? Uma noite fugiu do regimento e nunca mais teve parança, até que o agarraram… não lhe sigas o exemplo, pois quem foge também se agarra…
Da estação partiu o toque da corneta. Ana abraçou o filho; viu-o sumir-se na confusão das carruagens… Quando findou a guerra, a triste fiadeira encaminhava os olhos na direcção do vale. Cansadinha por tanto olhar, certa manhã, deitou os pés a caminho e foi à vila, onde alguém havia de informá-la.
O administrador do concelho não sentiu forças para lhe dar a cruel nova: -“ o seu filho morreu…numa batalha…”
Foi sentar-se num banco de jardim, perto de outras pessoas que falavam no soldado desconhecido que trouxeram de França, para enterrar na mais linda Igreja de Portugal. Resumiram-lhe o que tinha vindo nos jornais: O governo mandara vir dos campos de batalha o corpo de um soldado, de que ninguém soubesse o nome…
- É o meu filho! É o meu filho, Mãe Santíssima…
Nem disse adeus a ninguém. Na vila indicaram-lhe o caminho e, mal a diligência parou em frente do Mosteiro, correu em direcção ao pórtico, e deu logo com o local onde estava um soldado de sentinela ao companheiro morto na Flandres.
Ajoelhando junto à lápide, gritou pelo seu filho. Poucos dias depois, um diário da capital anunciava ter falecido, na vila da Batalha, uma pobre mulher que enlouquecera com a mania de ser a mãe do soldado desconhecido.
Quando esta notícia chegou à aldeia, toda a gente ficou sabendo onde fora acabar a desgraçada da fiadeira.
Adaptado a partir de “Ana fiadeira – a que enlouqueceu de amor“, in Agiológio Rústico, de Tomás da Fonseca, 1957.

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